(ligeiramente inspirado nesse artigo bastante ignorante publicado em fevereiro pela bbc brasil)
alguns meses atrás, conheci um outro cara do primeiro mundo em uma combinação de bloco e manifestação na maré, logo no início da invasão militar do complexo. o cara parecia ser legal, e por causa do lugar em que a gente se conheceu, imaginei que ele teria uma conscientização básica sobre o que estava acontecendo ao seu redor.
alguns meses atrás, conheci um outro cara do primeiro mundo em uma combinação de bloco e manifestação na maré, logo no início da invasão militar do complexo. o cara parecia ser legal, e por causa do lugar em que a gente se conheceu, imaginei que ele teria uma conscientização básica sobre o que estava acontecendo ao seu redor.
mas quando eu me identifiquei como gringo,
ele me olhou meio estremecendo, de uma maneira que eu já tinha visto. falando em português decente (apesar de
carregar um certo chororô), começou a explicar que não lidava bem com aquela
palavra, pois, para ele, a palavra gringo era uma ofensa que o reduziu a um
símbolo em vez de um indivíduo, sem considerar a sua personalidade, seus
valores ou suas ações.
confesso que a primeira vez que vim para o
brasil, depois de meu segundo ano de faculdade, esse parada de gringo também me
incomodou. não queria ser definido
por uma palavra que me sempre me separaria das pessoas ao meu redor. depois de
finalmente conseguir sair do colégio, não queria assumir um rótulo que
implicava não apenas um olhar permanentemente de fora, mas também muito desastrado,
uma incapacidade desajeitada e sem noção de entender as piadas contadas em
cadencias locais, ou de seguir os passos dados nas pistas de dança e nas calçadas
da cidade. queria ser visto para
quem sou, não como caricatura.
isso foi em 2002, quando a invasão do iraq
já estava dada como inevitável pelo governo estadunidense. depois de descobrir
minha nacionalidade, todos sempre me perguntavam se eu tinha votado em
bush. as primeiras vezes, fiquei
meio bolado: eu vim para o brasil como estagiário de um grupo de teatro comprometido
com direitos humanos, e estava fazendo trabalho voluntário em algumas favelas e
ficando cada vez mais apaixonado por lula. além do mais, me criei em cambridge, famoso reduto da
esquerda intelectual estadunidense; como é que podiam pensar que eu votaria em
bush?
nem lembro se alguém me explicou ou se eu
mesmo me toquei que fizeram essa pergunta comigo justamente para descobrir quem
realmente sou, para ir além da imagem do poder estadunidense eternamente
belicoso que tem sido muito mais que apenas uma caricatura no brasil, na
américa latina e na maioria do planeta, e que naquele exato momento estava
voltando com toda força.
quando eu me chamo de gringo, mostro que
sei disso, e que estou capaz de levar essa história a sério. é um passo pequeno, mas mostra que eu
sei que, mesmo que não seja a minha culpa pessoal que uma das principais imagens
que se tem dos estados unidos é da violência automática, também não é culpa de
quem se criou por aqui guardar essa imagem. mesmo tendo sido criado aprendendo sobre victor jara e xs desaparecidxs
latino-americanxs através de álbuns de cantores politizadxs como arlo guthrie e
holly near, também fui criado com um passaporte estadunidense, aproveitando
todas as oportunidades que o primeiro mundo me ofereceu. a palavra gringo carregue um pouco
deste peso histórico e destas expectativas, e é justamente por causa deste peso
que a palavra também carregue uma possibilidade de desafio àquela história.
tem um outro ponto, talvez menos dramático
mas também importante: a palavra
gringo é de uso comum no português brasileiro, e realmente não sinto que seja
tarefa minha ensinar os brasileiros a falarem sua língua mãe. aprender navegar nessa língua e
continuar a tentar melhorar, de aprender como me expressar e como ser eu mesmo
falando português é um processo crucial e contínuo. ser um gringo que fala é tanto conseguir me virar em
português quanto falar a verdade sobre abusos de poder. (além disso, a palavra gringo em
português não tem o mesmo peso que em espanhol...até entendo porque os demais
latinos no brasil podem não se dar bem com a
palavra, mas não tem a ver com meu caso).
quando me chamo de gringo, não é no intuito
de pedir desculpas para o passado, ou até para atrocidades atuais, mas para
mostrar que entendo que existe uma longa e violenta história que tem criado um
vão entre eu e as pessoas com quem eu moro, trabalho, estudo e crio diariamente.
me chamo de gringo para mostrar que estou aprendendo e escutando, fazendo o
possível para aproximar as nossas experiências. me chamo de gringo porque reconheço que sou implicado em
muitas estruturas que tem muito mais tempo de vida e impactos maiores e mais
materiais que eu já tinha; entendo porque me perguntam se eu votei em bush (ou
obama), ou o que eu penso sobre ai-5, ou pinochet, ou a guerra de drones (tem uma palavra melhor em
português?); também entendo
porque, muito de vez em quando, alguém pode não me ver para além desses fatos,
mesmo depois de eu os repudiar.
tem a ver com velhos ciclos de violência: em qualquer interação,
tem muito mais acontecendo de que apenas meus sentimentos delicados
primeiro-mundistas, ou minha empatia primeiro-mundista ou até minhas ações bem
intencionadas. se eu realmente
quero ser visto como um indivíduo aqui, o primeiro passo é reconhecer tudo que
aconteceu e continua acontecendo para tirar a individualidade das pessoas que
me cercam, e que, querendo ou não, tende a ser ligado a muitos gringos.
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